O alquimista

NEM TRANSMUTAÇÃO DE METAIS NEM ELIXIR DA LONGA VIDA - A PEDRA FILOSOFAL AO PODER

sexta-feira, agosto 26, 2011

O GUINESS


O Abraão que eu conheço tem a mesma idade do outro quando partiu em busca da terra prometida. Tem igualmente três filhos mas, ao que sei, todos eles rezam sobre a mesma cripta, o que me livra da tentação de prosseguir com estas suspeitosas analogias.

O bom do Abraão tem a boina preta inclinada para o mesmo lado da inclinação política e faz poesia nas horas vagas, embora esteja naquela fase da vida em que mais acertado seria dizer que tem trabalho vago nas horas em que as horas vagas lhe permitem trabalhar. 

O bom do Abraão queria entrar no Guiness, não na fábrica das cervejas de que também é apreciador, mas no Livro dos Recordes.

Nunca como hoje vi tanta gente à procura de um lugar para entrar num livro, em lugar de entrar numa livraria para o comprar. Mas claro, nestes períodos de recessão em que os meses se tornam demasiado compridos, o livro tem de esperar no fim da fila atrás do empréstimo, do pão e do gasóleo. É nestas alturas em que nos sentimos deprimidos, pessimistas e grávidos de esperança que procuramos equilibrar-nos por dentro, projectando para fora comportamentos megalómanos que façam esquecer as nossas frustrações. É assim como um sitius, altius, fortius versão familiar, mas com a obstinada intenção de ganhar.

Assámos seis mil e trezentos quilos de sardinhas ao ar livre e entrámos no Livro, embora saídos do alto mar há muito tempo. Temos a maior árvore do mundo no Alentejo, um sobreiro obviamente, que contribui com uma tonelada de cortiça por ano para isolamentos acústicos, rolhas ou para levarmos no cortiço com ela e entramos no Livro, embora saídos do campo há muito tempo. Lançámos ao ar dez mil balões e entrámos para o Livro, mas continuamos com evidente falta de ar. Fizemos um grupo de dezasseis mil com bolas vermelhas no nariz e continuamos à espera que não nos chamem palhaços. Para contradições já vi bem melhor.

Mas o bom do Abraão estava mesmo decidido a entrar para o Livro. Como? Lendo poesia. Ele e mais quatro amigos. Em salão emprestado, carregaram com livros, opúsculos, boletins ou simples papéis e em alternância oratória durante vinte e quatro horas desfiaram poemas com a mesma paixão e delicadeza de uma tecedeira.

A semana passada, ao sentar-me na cadeira, perguntei-lhe se já tinha chegado o veredicto dos senhores do Livro. Com as meninas dos olhos transformadas em senhoras de mau porte e tesoura em riste na mão esquerda vociferou: não há direito, aqueles bandidos não aceitaram o recorde porque a filmagem não foi contínua, e atirou com a boina para cima do balcão. Nesse fim de tarde não deixei que o bom do Abraão me fizesse a barba.